Pessoas envolvidas no desenvolvimento de modelos avançados de inteligência artificial frequentemente especulam sobre como o mundo será transformado quando a Inteligência Artificial Geral (AGI) e, posteriormente, a superinteligência artificial se tornarem realidade. Um exemplo recente é o ensaio do CEO da OpenAI, Sam Altman. A expectativa é que, uma vez atingido um nível de inteligência superior ao humano, a IA seja capaz de realizar descobertas científicas que hoje estão além da nossa capacidade, o que poderá trazer avanços significativos para a qualidade de vida da humanidade. Existe também o receio de que a IA acabe assumindo controle de aspectos cruciais do mundo, mas essa possibilidade costuma ser deixada de lado nas discussões públicas.
Com a chegada dessa era da superinteligência artificial, pode-se imaginar cenários em que doenças como o câncer sejam erradicadas ou que se descubra a cura para o diabetes e outras enfermidades que afetam centenas de milhões de pessoas. Essa é a esperança de muitos pesquisadores e entusiastas da área.
No entanto, não é necessário esperar que uma empresa declare ter alcançado a AGI para testemunharmos avanços concretos na medicina impulsionados por sistemas de IA. A AGI, vale esclarecer, é um estágio intermediário de desenvolvimento da inteligência artificial que deve ser alcançado antes da superinteligência. Um exemplo desse progresso é o sistema desenvolvido por pesquisadores da FutureHouse, chamado Robin, que foi criado com o objetivo de automatizar processos de descoberta científica. Robin é um assistente digital para cientistas e é composto por vários modelos de IA que atuam nas diferentes etapas de uma pesquisa científica.
O Robin foi empregado para encontrar um possível tratamento para a degeneração macular relacionada à idade em sua forma seca (dry age-related macular degeneration, ou dAMD), uma condição que pode causar cegueira irreversível em pessoas idosas e que afeta cerca de 200 milhões de pessoas ao redor do mundo. Utilizando esse sistema, os pesquisadores propuseram o reaproveitamento de um medicamento chamado ripasudil, já aprovado para o tratamento de glaucoma, como possível solução para a dAMD.
O funcionamento do Robin envolve três componentes principais, cada um composto por modelos de linguagem distintos e responsáveis por diferentes tarefas no processo de pesquisa. O componente chamado Crow, Falcon e Owl é responsável por realizar buscas em literatura científica e elaborar sínteses de conhecimento existente. O Phoenix lida com o projeto de síntese química e o Finch realiza análises complexas de dados experimentais. No caso da dAMD, o Robin começou com o Crow examinando cerca de 550 estudos científicos sobre o tema. A partir disso, o sistema formulou uma hipótese, sugerindo que o aumento da fagocitose (processo de “limpeza” celular) do epitélio pigmentar da retina (RPE) poderia representar uma abordagem terapêutica eficaz.
Na sequência, o Falcon analisou possíveis moléculas capazes de promover esse aumento na fagocitose. O RPE é uma camada de células que remove detritos produzidos pelos fotorreceptores da retina, e sua falha leva ao desenvolvimento da dAMD. O Falcon identificou dez moléculas candidatas que foram testadas em laboratório pelos pesquisadores. Posteriormente, o Finch analisou os dados resultantes desses testes e descobriu que um inibidor de Rho-quinase (ROCK) conhecido como Y-27632 aumentava a fagocitose do RPE em culturas celulares.
A pesquisa prosseguiu com Robin propondo uma nova rodada de experimentos baseada nos resultados anteriores. Desta vez, o sistema recomendou a realização de um experimento genético utilizando sequenciamento de RNA (RNA-seq) para verificar se o inibidor ROCK identificado poderia induzir alterações na expressão genética que levassem o RPE a intensificar a remoção dos detritos celulares acumulados. Os testes revelaram que o Y-27632 aumentava a expressão do gene ABCA1, responsável por atuar como uma bomba de lipídios (colesterol) nas células do RPE, promovendo a liberação de gordura pelas células.
Com base nos dados da primeira rodada de testes, o Robin também sugeriu uma nova lista de candidatos a medicamentos. Entre eles estava o ripasudil, uma substância já aprovada e utilizada para o tratamento de doenças oculares como o glaucoma. Nos testes realizados, o ripasudil aumentou a taxa de fagocitose em 7,5 vezes, o que indica que o medicamento pode melhorar significativamente a capacidade do RPE de eliminar detritos celulares. Ao impedir esse acúmulo de resíduos, o avanço da cegueira causada pela dAMD poderia ser evitado.
Todo o processo durou apenas dois meses e meio, o que representa uma aceleração considerável em comparação com os métodos tradicionais de pesquisa científica, que normalmente levam anos para alcançar resultados semelhantes. Os cientistas escolheram a dAMD como caso de teste para avaliar o potencial do sistema Robin, mas ressaltam que a tecnologia poderia ter sido aplicada a qualquer outra doença de grande impacto social e sanitário.
Contudo, o fato de o ripasudil ter apresentado resultados promissores não significa que ele será imediatamente adotado como tratamento padrão para a dAMD. O medicamento só poderá ser utilizado com esse novo propósito após a realização de testes clínicos em humanos que confirmem a validade das hipóteses formuladas pela IA. Ainda assim, o uso de um fármaco já aprovado representa uma grande vantagem, pois reduz o tempo necessário para aprovação de novos tratamentos em comparação com o desenvolvimento de moléculas inéditas.
O experimento com o Robin não foi o primeiro a utilizar IA para redirecionar medicamentos já existentes para outras finalidades terapêuticas. Porém, o sistema se diferencia por sua complexidade: ele não apenas lê grandes volumes de literatura científica para identificar possíveis efeitos colaterais aproveitáveis, mas também participa ativamente da formulação de hipóteses, da escolha de moléculas e da análise de dados laboratoriais. A atuação humana limita-se à execução dos experimentos, à validação dos resultados produzidos pelos modelos de IA e à realização de ajustes nos algoritmos e comandos utilizados.
É razoável imaginar que pesquisas conduzidas de forma semelhante venham a conduzir à descoberta de novas terapias para uma ampla variedade de doenças. Um fator relevante é a decisão dos desenvolvedores de tornar o Robin um projeto de código aberto (open-source), permitindo que outros pesquisadores utilizem o sistema para realizar experimentos semelhantes ou desenvolvam suas próprias versões de assistentes científicos baseados em IA.
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