Desde que um engenheiro acionou um interruptor, a transmissão de eletricidade no mundo tem acontecido por meio de fios. Seja pelas linhas de alta tensão, pela fiação de distribuição de baixa potência ou pela tomada da cozinha, tudo depende de cabos. Isso funciona bem para casas, negócios e celulares, mas há contextos em que postes e fios simplesmente não fazem sentido. Pode ser caro demais instalar infraestrutura em uma ilha remota, por exemplo. No espaço, não há como ligar satélites solares a estações terrestres com fios. Com a eletrificação em expansão para enfrentar as mudanças climáticas, a necessidade de enviar energia para qualquer lugar, com ou sem fios, é mais urgente do que nunca.
Há mais de um século, cientistas e engenheiros pensam em transmitir energia de forma diferente: sem fios. Trata-se da transmissão sem fio de energia, ou power beaming, uma ideia antiga que há décadas está em ensaio tecnológico. Inventores já experimentaram transmitir energia com micro-ondas, ondas de rádio e lasers. Podemos traçar essa ideia até Nikola Tesla, um inventor cujas ideias variavam entre o revolucionário e o excêntrico. Em 1926, ele previu algo parecido com os smartphones. Seu projeto mais ambicioso, o Sistema Sem Fio Mundial, pretendia transmitir eletricidade pela ionosfera da Terra, transformando o planeta inteiro em um condutor. Embora o projeto não tenha avançado, a ideia sobreviveu.
Segundo Stephen Sweeney, professor de fotônica e nanotecnologia, Tesla pensava em métodos de indução, como usar campos elétricos para gerar corrente em outro ponto, o que funciona bem a curtas distâncias. A dificuldade sempre foi como direcionar as ondas eletromagnéticas. Com os avanços tecnológicos após a Segunda Guerra Mundial, surgiram possibilidades reais com micro-ondas e lasers. Em 1964, o engenheiro William C. Brown conseguiu manter um pequeno helicóptero voando por 10 horas com energia transmitida por micro-ondas. Em 1975, junto a Richard Dickson da NASA, Brown transmitiu 30 quilowatts por um quilômetro, com eficiência de 50%. Foram marcos importantes, mas ainda limitados.
Com o tempo, tecnologias como computadores, painéis solares, lasers e transistores evoluíram, e a necessidade de fontes limpas de energia cresceu. Sweeney explica que o avanço recente se deve à redução dos custos de fabricação. Rick Hodgson, da empresa neozelandesa EMROD, ressalta que a transição energética acelerou o interesse. Um exemplo é um contrato bilionário de uma mineradora australiana para adquirir centenas de veículos elétricos. O desafio, então, passa a ser como recarregar esses veículos. Com power beaming, caminhões, drones e satélites podem continuar funcionando enquanto recebem carga remotamente, o mesmo valendo para sensores inteligentes que conectam o mundo digital.
O power beaming é competitivo e versátil, pois várias faixas do espectro eletromagnético podem ser usadas. No sistema da EMROD, a energia vinda da rede elétrica é convertida em micro-ondas e transmitida entre duas antenas, voltando a ser corrente contínua ao final. O que muda de sistema para sistema é o comprimento de onda utilizado. As micro-ondas, por exemplo, atravessam a atmosfera sem grandes perdas, mas exigem antenas maiores quanto maior for a distância. Já os lasers, por terem comprimentos de onda menores, concentram melhor o feixe, permitindo receptores menores. No entanto, são mais sensíveis a perturbações atmosféricas.
Entre esses dois extremos, há faixas intermediárias como a usada pela Reach Power, que trabalha com ondas de rádio na faixa dos milímetros. O CEO da empresa, Chris Davlantes, aponta que sua tecnologia funciona melhor em distâncias de até 25 quilômetros, ideal para cidades com veículos autônomos, drones e sensores distribuídos, ou até como substituto de geradores de emergência.
O power beaming é hoje um esforço global. Nos EUA, há investimentos militares; na Europa, o foco é energia verde; na Ásia, especialmente no Japão, o destaque é a transmissão de energia do espaço. E, ao contrário de promessas tecnológicas que sempre parecem estar a 30 anos do presente, o power beaming está mais próximo da realidade. Davlantes afirma que os primeiros casos práticos envolvem sensores de baixa potência que podem ser alimentados quase como se estivessem ligados a uma rede Wi-Fi. Empresas como Powercast e Wi Charge já trabalham com aplicações domésticas e comerciais, como iluminação inteligente e sensores de movimento. Imagine prateleiras de supermercado com painéis digitais atualizados remotamente e alimentados por transmissores instalados no teto.
Os primeiros usuários, como costuma acontecer com novas tecnologias, devem ser os militares, capazes de lidar com ineficiências iniciais por conta da urgência de suas operações. A eficiência, no entanto, é prioridade para a EMROD, que testa seu sistema com parceiros ao redor do mundo e afirma já alcançar 95% de eficiência, com potencial para chegar a 99%.
O objetivo da empresa é ainda mais ambicioso: criar uma rede elétrica global chamada Matriz Energética do Mundof, composta por satélites capazes de coletar energia solar contínua no espaço, transmiti-la entre si e enviá-la para qualquer ponto do planeta. A agência espacial japonesa JAXA já planeja colocar em órbita, até a década de 2030, uma estação espacial capaz de transmitir um gigawatt de eletricidade, equivalente à produção anual de um reator nuclear.
Mesmo que esses projetos espaciais ainda estejam no horizonte, as aplicações terrestres estão prestes a se tornar realidade. A tecnologia já está madura, acessível e, acima de tudo, a descrença inicial vem sendo substituída por aceitação. Davlantes lembra que no começo as pessoas diziam que era impossível. Agora, elas acreditam que é real.
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